Boas.
À uns anos atrás fui contratado para fazer um trabalho. Consistia na gravação de uma festa de escola. Cliente já frequente, quiz fazer algo diferente dessa vez, algo melhor. E a solução passava por uma segunda câmera de video.
Uma coisa era investir um pouco mais do meu tempo, fosse na preparação ou na edição do trabalho, outra era contractar um segundo op. de câmera para o efeito. O orçamento não permitia tal, pelo que fiz aquilo que me parecia mais viável: eu próprio ia executar o trabalho com duas câmeras de video. Já tinha alguns anos de experiência nestas coisas do audiovisual, já tinha realizado dezenas de gravaçôes do genero (sempre com uma câmera), pelo que me senti capaz de sózinho dar conta do recado. Tudo dependia da preparação e da experiência que tinha, pelo que não ía ser um problema de maior. Acreditava eu que o sucesso era garantido, não tinha forma de me fugir. E não tinha.
Esquematizei o plano de acção, previ os eventuais imprevistos e fui com antecedência para o local das filmagens. Câmeras, tripés, gravador de audio e outro de video... nada foi deixado ao acaso. Antes uns dias já tinha ído ver o local das gravaçôes, e esse foi o primeiro problema detectado, mas rápidamente resolvido. As gravaçôes (e espectaculo) iam decorrer num cinema, pelo que tendo eu optado por ficar a cerca de 2/3 do espaço e numa zona central, isso significava que todas as cadeiras na mesma fila atrás de mim não podiam ser utilizadas, pois a minha pessoa de pé cortava a visão aos espectadores. Também duas cadeiras de cada um dos meus lados não podiam ser utilizadas, para evitar que alguém, sem querer, toca-se com os pés no tripé. Os espectadores à minha frente não eram problema, mesmo que alguém se levantasse a meio do espectaculo, pois ficando eu numa zona elevada, não seria afectado pelas eventuais acçôes dos "residentes". Não sendo o cinema muito grande e os espectadores esperados muitos, a ideia das cadeiras vazias não era do agrado da organização. Mas não havia outra hipotese, tinha de ser assim. E lá acederam.
Outro problema era as luzes. O espectaculo ía ter luzes psicadélicas, uma ou outra ocasião às escuras, só mesmo com uma vela acessa. O locutor ía ficar numa zona de sombra, entre cada actuação. Lá falei com a organização que sem luz não existe imagem, pelo que alguma coisa tinha de ser alterada. Lá se chegou ão concenso de que dois projectores de luz não muito fortes iam ficar sempre acessos durantes todo o espactaculo, permitindo assim a gravação do locutor e do que acontecia no palco, sem contudo afectar a coreografia que já estava definida, podendo as luzes psicadélicas serem utilizadas como estava previsto, sem alteraçôes. Explicada as razôes ão cliente, fácil era para eles reconhecerem que efectivamente era necessário aceder às minhas exigências, pois todas elas tinham a sua razão de ser. Não era mera vontade minha.
Dia da gravação, tudo preparado. Começa o espectaculo. E começam os problemas.
O palco tão depressa estava cheio pelos actores, como depressa estava vazio. Ora estavam todos concentrados a um canto, como depressa estavam em extremos opostos. Ora falava um num canto, ora mexia-se outro no outro lado oposto. Para complicar ainda mais a situação, a luz não era uniforme, por via de um projector de luz spot que estava a ser utilizado. Havia pontos do palco em que a intensidade luminosa era maior, pelo que obrigava a estar constantemente a regular a íris, em função do enquadramento optado, para não ficarem as imagens sub ou sobre-expostas.
Rapidamente me apercebi que não era exequível controlar as duas câmeras, pelo que o resultado ía ser o fracasso. Não estava a conseguir seguir o plano, as coisas estavam a se complicar, estava a perder o controle da situação. O espectaculo ainda estava no inicio, e já eu estava a visualizar o grave problema que ía ter pela frente, aquando a edição. Não estava a conseguir duas imagens consecutivas das câmeras, pelo que o raccord não estava a ser assegurado. O insucesso estava mesmo à minha frente a segurar uma placa, e não havia forma de o ignorar.
Rapidamente acabei por tomar a decisão que não queria tomar: abandonar o controle de uma das câmeras e concentrar-me numa. Efectuar o trabalho com base no que sabia ser seguro e cuja fórmula já dezenas de vezes tinha sido utilizada com sucesso. Por isso, coloquei a câmera B a enquadrar todo o palco, em automático, e esqueci que ela ali estava. Concentrei-me na câmera A, fiz de conta que só tinha as imagens daquela câmera.
Tal decisão veio-se a verificar como tendo sido a mais acertada. Voltei a ter o controle da situação, a assegurar o raccord das imagens, e mais importante ainda, eliminei o stress que a câmera B me estava a provocar. É preferivel fazer um trabalho simples mas bem feito que querer fazer um mais sofisticado e ficar mal feito.
Na edição, cheguei a utilizar algumas imagens da câmera B, mas a maioria foi mesmo as da câmera A. Tive foi muita mais dificuldade em editar o inicio do espectaculo, mas com alguma criatividade e muita persistência lá consegui dar a volta ao descontrole que as mesmas tinham, fruto daqueles minutos em que estava a tentar controlar as duas ão mesmo tempo. O trabalho ficou bom, mas eu noto que no inicio não ficou tão bem. Mas o mais importante foi o cliente que não deu por nada, e curiosamente, achou que no geral estava melhor que das outras vezes, mas aí creio que foi a psicologia a funcionar, pois ver "tanto" equipamento nas gravaçôes levou-o a pensar que o trabalho estava melhor. Mas não estava.
Depois dessa experiência, já por mais uma ou outra vez tentei alterar a "fórmula" com vista a melhorar o trabalho. Mudando de local, recorrendo a tripès posicionados em posiçôes diferentes, câmeras fixas,... mas sempre com os mesmos resultados e sempre cheguei à mesma conclusão: querer fazer tudo nunca dá bom resultado. Não é possivel um gaijo de dividir em dois e querer fazer o trabalho que a dois compete fazer. Querer fazer tudo sózinho leva-nos a cometer demasiados erros, aumenta as provabilidades de fracasso, aumenta o stress, o desconforto instala-se e acabamos por fazer mal o nosso trabalho. Um só op. de câmera já tem muito com que se preocupar, não precisa de mais preocupaçôes.
Querer fazer vários planos, em posiçôes diferentes, com equipamentos diferentes, em situaçôes diferentes... a ideia de que conseguimos fazer tudo é muito agradável para o nosso ego pessoal, mas na prática não se consegue. A cabeça trabalha a mil à hora a tentar controlar e a pensar em tudo, mas em algum ponto a coisa vai arrebentar e dar para o torto. Em reportagem, a necessidade de acção imediata não é compativel com experiências, com previsôes. Tem-se que ser capaz de controlar em tempo real as nossas acçôes, no equipamento. Reportagem não é cinema. Em cinema controla-se luzes, actores, locais, posiçôes de equipamento e de acção. Se corre mal, repete-se. Nada está perdido. Em reportagem, é só o individuo e a sua câmera. Se não trabalham os dois em conjunto, o fracasso é garantido. Não à volta a dar.
À certas ideias que são muito agradáveis. E a ideia de que conseguimos fazer tudo e bem feito é uma das que por norma nos agrada mais. Mas depois vem a experiência e nos mostra que estavamos enganados. Mas mais que nos mostrar a "ilusão" que estavamos a viver, é o fracasso com que somos confrontados. E temos breves minutos, por vezes mesmo segundos, para tomar as decisôes. E se não estamos preparados para alterar os planos, então o serviço está perdido.
Eu faço tudo! Gostava que sim, mas não sou capaz. Boas.